Tempos estranhos e aprendizados

Tempos estranhos e aprendizados

07/05/2020
O que estamos a viver nestes dias estranhos é uma situação inédita em nossas vidas. Inédita para aquilo que usualmente costumamos chamar de mundo real, pois nas ficções, dias como os de hoje são chamados de distopias...

O que estamos a viver nestes dias estranhos é uma situação inédita em nossas vidas. Inédita para aquilo que usualmente costumamos chamar de mundo real, pois nas ficções, dias como os de hoje são chamados de distopias: relatos de catástrofes, de vida pós-apocalíptica dos quais, a série The Walking Dead faz uma excelente síntese.

Mas, longe da ficção e bem colado à realidade, o que temos é uma pandemia de abrangência mundial que desde seu “Paciente 0” em novembro do ano passado, 2019 – por isso, o nome COVID-19 (Coronavírus-19) – tem mudado radicalmente a vida por todo o globo terrestre. Costumo dizer que o vírus já infectou a todos nós, afinal de uma forma ou de outra, ele já alterou o curso de nossas vidas.

Chamo estes tempos de ‘estranhos’ e não é sem motivo. Tenho uma intenção didática (coisa de professor...) com isso: o que eu tenho, de fato, é um convite a todas as pessoas – procurar aprender com estes tempos estranhos, justamente, porque eles são estranhos... eu explico.

Se até o fim do ano passado vivíamos aquilo que está se chamando agora de ‘antiga normalidade’, vivíamos nosso dia a dia de maneira automática, ou seja, sem pensar muito nele. É assim que normalmente as coisas acontecem no arrastado do cotidiano. Isso é bom, não é ruim, não. Mas, há um problema nisso, um problema invisível que a gente só nota quando a ‘normalidade’ é rompida. Se o normal sai de cena, entra em seu turno, o estranho. E estranhar as coisas também não é ruim, não!

No cotidiano, no normal da vida, somos arrastados pelo turbilhão de coisas, providências e ações que precisamos tomar, quase tudo no automático, sem percebermos o que estamos fazendo: nossa relação com todas as coisas da vida é tomada por este caráter pragmático, desde a mais básica, que é a vivência do tempo até as formas mais elaboradas de convivência e de busca de nossos objetivos da vida. Ou seja, a gente não para pra pensar no que faz da Vida.

Hoje, com esta situação de pandemia, tivemos que parar. Muitos de nós tivemos a vida abruptamente interrompida (ou, no mínimo, profundamente alterada), quer seja no âmbito profissional, quer seja no pessoal. É nesse ponto que quero apresentar minha proposta: penso que o momento atual – justamente por ser estranho – é mais que propício para aprendermos um pouco mais sobre nós mesmos, sobre a sociedade como era, como está e como a queremos e nos movimentarmos num sentido distopia à utopia (Esta querendo dizer horizontes possível e não sonho impossível, há que se fazer a diferenciação).

Nossa vida e todos os seus detalhes vividos no automático saltam, por assim dizer, para um plano de destaque – sim, quer queiramos, quer não queiramos paramos para pensar na vida. Estes tempos estranhos são perigosos para a Vida e para a nossa Vida. Hoje (17-04-2020), no Brasil, passamos de 2.000 mortes (sem contar o problema da subnotificação...). Realmente, o espectro temeroso da morte nos ronda. E quando a morte se aproxima, o valor da Vida ressurge e com força. Não só em nossas questões existenciais individuais, mas no coletivo – propostas e votos de novas solidariedades surgem por todas as partes, infelizmente, lado a lado com descasos, provocações e minimizações da radicalidade da situação. Assim é no Brasil.

Uma metáfora sobre estes tempos: imagine que cada um de (e todos) nós estamos atravessando um rio. Para realizar a travessia, precisamos construir uma ponte. Estamos todos por sobre este rio enquanto construímos, diariamente, a tal ponte. O rio é largo e, por conta de uma forte neblina, não conseguimos ver a outra margem. Não conseguimos ver se o outro lado está a 100 metros ou a 10 quilômetros; não sabemos se teremos material suficiente para construir a ponte, não sabemos quantos de nós sucumbirão durante a obra, mas precisamos seguir construindo essa passagem. Essa metáfora nos remete à incerteza!

Essa é nossa situação. Nesta situação, temos que viver um dia de cada vez (como que a vida posta entre parêntesis), construindo este tempo de passagem (a ponte) por sobre um rio com neblina (a pandemia) no intuito de chegar à outra margem (momento pós-pandemia).

Desta metáfora podemos tirar um sem-fim de temas para nosso aprendizado. Por exemplo, podemos imaginar nossa posição na construção da ponte e ver nossa situação de privilégio ou não no campo do social abalado pela pandemia. Quantas pessoas estão lá, na base da ponte, juntas do rio, fazendo a base para nossa travessia? Quantas pessoas, não tem nenhum material para seguir construindo sua ponte? Tantas questões que nos eram tão distantes em novembro de 2019...

Nosso cérebro não sabe lidar com incertezas (a pandemia é uma incerteza global), ele prefere a certeza (nossa antiga realidade): mas, já não a temos e precisamos assumir em plenitude esse tempo de incerteza (que não vai cessar quando o outro lado do rio chegar). O que vai acontecer (isso com certeza) é que essa travessia uma hora vai acabar, ela é só uma passagem. Mas, com isso, sabemos que fincaremos as bases de nossa ponte numa terra desconhecida e a ser desbravada: novas relações globais, novas formas de avanço e de retrocesso do capitalismo, novas crises e ameaças da globalização, mas também, novas solidariedades, novos compromissos entre as pessoas. Daqui para frente, ou encaramos a certeza de que não temos mais certeza de nada, ou viveremos na ilusão. Viver na ilusão nestes tempos, pode ser fatal. É necessária essa lucidez para sobrevivermos aos novos tempos.

Aprender será parte integrante da sobrevivência e isso pode ser um grande trunfo em nossas mãos. Podemos usar o tempo ‘estranho’ para nos perguntarmos sobre nossa antiga realidade e entender muitas coisas a nosso respeito, sobre como convivemos com os nossos, com as diferenças; refletirmos sobre nosso consumo, nosso desperdício, sobre o supérfluo; podemos investigar nossa relação com o tempo que passa, com a finitude, com a Vida e com a Morte; com nossos estudos e nossos projetos de vida – e ver se o que queríamos era nosso mesmo ou se perseguíamos ideias de outras pessoas, ou aqueles impostos pelo mercado.

Enfim, espero que saibamos usar a inevitabilidade destes tempos estranhos – na medida do possível – em nosso favor – e, não tenho a menor dúvida que o aprendizado é uma medida interessante. Os tempos difíceis nos quais a vida se sente ameaçada são ideias para revalorizarmos a plenitude da vida! Vivamos, pois!

 

Prof. Dr. Helio Hintze é educador, filósofo e pesquisador transdisciplinar. Atua no Projeto Fazer Pensar – Ética e Educação e coordena o Observatório do Machismo. Doutor em Ciências pela USP, tem Pós-doutorado em Economia, Administração e Sociologia (USP) e atualmente realiza Pós-doutorado em Formação de Educadores contra o machismo (USP). Autor de livros sobre Pedagogia, Combate ao Machismo, estudos do consumismo e turismo.



por Helio Hinze
Helio Hinze

Educador e Filósofo / Palestrante e Consultor do Projeto Fazer Pensar da Usina do Conhecimento Educador do Projeto Sabores & Saberes: Educação para o Gosto Consultor Associado GKS Consultoria Atuou como Professor Universitário em diversas Universidades: UFSCAR - Sorocaba, UNIMEP Piracicaba, SENAC, Uniararas