Sobre a importância de se nomear as violências - Parte I

Sobre a importância de se nomear as violências - Parte I

07/06/2019
Esta é a primeira parte de um breví­ssimo relato da experiência da primeira "Atividade de Extensão" realizada pelo Grupo de Estudos FAZER PENSAR em ética (em 30-05-19), sob minha coordenação...

Vamos nomear as diferentes formas de violência?

Esta é a primeira parte de um brevíssimo relato da experiência da primeira ‘Atividade de Extensão’ realizada pelo Grupo de Estudos “FAZER PENSAR” em Ética (em 30-05-19), sob minha coordenação. Nosso grupo de estudos objetiva criar oportunidades para a conexão e formação de pessoas, para a reflexão individual e conjunta de seus participantes, para a produção e divulgação de conhecimentos em Ética, dialogando com os saberes e práticas cotidianos. Buscamos: (1) promover a reunião de pessoas interessadas no estudo conceitual da Ética e da Educação em suas mais diversas manifestações; (2) desenvolver atividades e estratégias educativas não formais propícias à formação de pessoas e à produção e disseminação de conhecimentos; e (3) promover ações de intervenção educativa nas realidades dos participantes do grupo.

 

Conheça a iniciativa do grupo em:

http://heliohintze.com.br/pagina/grupo-de-estudos-em-etica-e-educacao-piracicaba-1s2019/42

 

O tema central de nosso encontro foi ‘Ética e dignidade humana: como combater a violência doméstica e o abuso sexual de crianças e adolescentes?’ – ideia nascida da parceria entre o Grupo de Estudos e a PASCA, a fim de contemplarmos uma contribuição no Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração de Crianças e Adolescentes. Nosso tema ganhou um contorno mais amplo, abrangendo as violências domésticas – notadamente, quando aplicadas contra as crianças e adolescentes. No encontro, inicialmente, eu falei sobre o tema “Nomear as violências” buscando abordar o conjunto de ideias a partir do aporte da Ética e da Dignidade Humana. No segundo momento, tivemos a presença da Assistente Social Fabiane Cristina Vieira de Souza, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Setor de Serviço Social - Comarca de Piracicaba/SP que falou sobre o tema proposto.

 

A ideia central e principal objetivo de nosso encontro foi convidar os presentes a refletirem sobre a necessidade de darmos nomes às diferentes formas de violência e, com isso, localizarmos tais manifestações em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto... essas são premissas básicas para a compreensão da temática (que se manifesta de diferentes maneiras, pelo racismo, sexismo, abuso, assédio, exploração...). Diferentes maneiras, mas que carregam consigo uma similaridade: todas retiram o ser humano de sua condição de inalienável dignidade e o colocam sob a condição de objeto da maldade (do gozo) do Outro. A ignorância aí reside e a Solidariedade é a busca por considerar e tratar os sujeitos como sujeitos de direitos, de história, de si, enfim.

É por isso que entendemos que precisamos nomear as violências para podermos compreendê-las e combate-las. Nomeando-as, podemos identificar quais nós sofremos quando somos VIOLENTADOS, e (muito importante) compreendermos quais são as que nós praticamos, quando somos nós os violentadores. Vejamos, para efeito de um breve e contundente exemplo, a questão do machismo, dos privilégios masculinos e a dificuldade que nós homens temos em reconhecer uma série de violências que praticamos contra a mulher e outras sexualidades. Sem nomes, tais violências são encaradas e compreendidas como dados da natureza e ficam para fora do campo da crítica e, portanto, de sua superação.

 

Quando proferimos as palavras, nós não proferimos simples sons, antes – o que fazemos é dar sentido, significado às coisas, às pessoas, às situações: “os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões do intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas” (LAKOFF e JONHSON)

 

Junto de Marilena Chaui, entendemos que “fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, aos seus interesses e desejos, ao seu corpo e consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis como a morte, a loucura, a autoagressão ou a dos outros”.

Se é exercício é algo constante, não se trata de ato isolado, trata-se de uma prática. O exercício da força física quando posto contra a vontade de outrem é parte preponderante da ideia de violência, quando, por tal exercício, submetemos outrem à nossa vontade, ou seja, tornamos esse Outro (sujeito humano e digno em si), objeto de nosso gozo, de nossa maldade.

Mas, a violência não se limita à questão física, pois a coação psíquica é igualmente usada para submeter. Um grande perigo é não ser relacionada com a violência como fenômeno em si (“Eu não bati nela, eu ‘só’...”) – ou ser relacionada a algo ‘menos’ violento que a força física: submeter alguém um exercício de domínio psíquico é uma forma de violência como qualquer outra e precisa ser combatida...

Esses dois movimentos (o uso da força física e a coação psíquica) são usados pelo agressor (ou pela agressora) a fim de obrigar alguém a fazer coisas que contrariam seus próprios interesses, desejos, corpo e consciência. É nesse momento que há a objetificação, a coisificação da pessoa que sofre a violência, por esta não ter condições físicas, psíquicas, econômicas, materiais, intelectuais, emocionais de reagir ao assédio e à agressão do outro. Percebamos que é justamente aí que entra a necessidade de identificarmos quando é que um ser humano deixa de ser ‘humano’ e passa a ser ‘coisa’, objeto da vontade alheia... isso, entendemos nós, nos ajudará a combater a violência.

Por fim, esse exercício dA maldade, da força e da coação causa danos profundos e irreparáveis como a morte, a loucura, a autoagressão ou a dos outros... Não menosprezemos, embora a ‘morte física’ seja a agressão final (vide o problema do feminicídio), muitas vezes essas pessoas-objeto são mortas em vida, pois a morte psíquica, a morte da vontade, do brilho nos olhos, da esperança são igualmente possíveis... contra todas elas é que lutamos.

 

Kant nos ajuda a entender que “o homem [...] existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente como fim” – somos fins em nós mesmos, por isso é que temos dignidade.

Neste sentido, “a concepção Kantiana de dignidade da pessoa como um fim em si leva à condenação de muitas outras práticas de aviltamento da pessoa à condição de coisa, além da clássica escravidão...” (Comparato no livro “Ética”) – veremos na parte II deste texto as diversas formas da violência quando no âmbito doméstico (com foco em crianças e adolescentes), infelizmente, grande foco de agressões silenciosas e, em muitas vezes, impunes frente a diversos problemas que se apresentam.

Se nosso objetivo aqui é lutar contra a coisificação da pessoa humana, contra toda e qualquer forma de aviltamento de nossa condições de dignidade é preciso que nos munamos contra as práticas de violência quaisquer que elas sejam: para tanto, é importante também termos claramente o conceito de ‘Pessoa’: “cada ser humano considerado como individualidade física e espiritual, e dotado de atributos como racionalidade, autoconsciência, linguagem, moralidade e capacidade para agir” (conferir o dicionário Houaiss).

 

Temas importantes para a consideração da dignidade da pessoa:

  • Consciência – somos seres racionais
  • Vontade livre – possuímos a liberdade para tomarmos nossas próprias decisões e arcarmos com as responsabilidades delas oriundas.
  • Capacidade para a Comunicação
  • Autonomia – como condição de legislarmos sobre nossa própria vida, não no sentido de uma ‘liberdade irrestrita’, mas no diálogo com as limitações que nos cercam.
  • Liberdade e Responsabilidade: portanto, a capacidade de podermos decidir e, insistimos, assumir a responsabilidade por nossas ações e, da mesma maneira, nossas omissões.
  • Autodeterminação
  • Interações (com os outros seres humanos, com a natureza)

 

Este texto continua em breve, quando falaremos mais sobre as diferentes violências que foram abordadas em nosso encontro. Sabia mais em www.heliohintze.com.br

 

Algumas referências:

  • Comparato, Fábio Konder Ética : direito, moral e religião no mundo moderno / Fábio Konder Comparato. — 3a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2016.
  • KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela - Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67/68.
  • Lakoff, G.; jonhson, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: EDUC, 2002. 360 p.

 



por Helio Hinze
Helio Hinze

Educador e Filósofo / Palestrante e Consultor do Projeto Fazer Pensar da Usina do Conhecimento Educador do Projeto Sabores & Saberes: Educação para o Gosto Consultor Associado GKS Consultoria Atuou como Professor Universitário em diversas Universidades: UFSCAR - Sorocaba, UNIMEP Piracicaba, SENAC, Uniararas